Fica malicioso perguntar a alguém se
já está preparado para refocilar tranqüilamente nos feriados ou, melhor ainda,
indagar a priori "refocilaste bem?"

Fevereiro é sempre um mês que carrega
em si a agradável idéia de menos trabalho (para quem já o tem), seja por ser um
mês mais curto (mesmo nos anos bissextos), seja pela constância com a qual o
Carnaval nele desponta. É mês também um pouco indefinido, inclusive quanto à
origem do nome "
februarius"
-talvez vindo do latim "
februare"
(purificar)- e acabou se tornando para nós uma época raramente recomendável
para iniciar projetos e atividades, exceto no insistente e fragmentado
calendário escolar.
Fevereiro parece um intervalo temporal
menos sério e austero, quase deixando levemente suspensa a gravidade de nós
requerida para o restante dos meses. Nele, o nosso desvelo dá-se o direito de
relaxar um pouco e dissolve em parte o apego aos cronogramas implacáveis
("Depois de fevereiro, a gente vê como faz").
No entanto, apesar da fingida
vacuidade, fevereiro lembra para muitos um período de agradável refocilamento.
Refocilamento? Será que Assis Valente sabia disso ao escrever "Brasil,
esquentai vossos pandeiros, iluminai os terreiros, que nós queremos
sambar?". Nosso idioma guarda delícias surpreendentes e uma delas é que
essa estranha palavra, "refocilamento", significa recuperação das
energias perdidas. De onde vem tal entendimento? Em latim, o vocábulo "focus" (fogo) ganhou o diminutivo
"focilus" (foguinho), não
na acepção ébria, tão inconveniente durante esses festejos, mas indicando o
esquentar, aquecer e, por extensão, reanimar.
Refocilar é, portanto, reaquecer e
revigorar! Uma pitada de erudição? É só lembrar que Camões usa o verbo no Canto
9º de "Os Lusíadas", dizendo "Algum repouso, enfim, com que
pudesse / refocilar a lassa humanidade". Fica malicioso perguntar a alguém
se já está preparado para refocilar tranqüilamente nos feriados ou, melhor
ainda, indagar a posteriori, na volta ao trabalho: "Refocilaste
bem?".
Para muita gente, refocilar implica
antes de tudo ser capaz de passar os dias de folga "morgando". "Morgar",
essa gíria brasileira que quer dizer, entre outras coisas, dormir, nada fazer,
deve ter a sua fonte indireta em "morgue" (necrotério, como descanso)
ou até em morgado (bens e privilégios herdados que permitiam não trabalhar
mais). De qualquer forma, "morgar" sugere o remanso, o sossego, a
habilidade lentamente desejada e desenvolvida para imobilizar as atribulações
do cotidiano e evitar perturbações momentâneas.
Refocilar é restaurar e reforçar. É
recompor potências, recuperar forças, retomar a animação, isto é, a vitalidade.
Note-se que, em todos os desdobramentos e identidades desse verbo, aparece o
prefixo "re", que indica
repetição ou reforço de sentido, de forma a trazer de volta aquilo que talvez
tenha se ausentado. Mas logo agora, que o ano apenas começou? Não parece
prematuro? Refocilar, todavia, é também desenfadar e desenfastiar, e aí o
prefixo "des" é negativo,
de modo a tornar nulo o enfado e o fastio. Qual enfado ou fastio? Aquele que os
aborrecimentos, as importunações e os desprazeres miúdos provocam sorrateiros
no nosso viver e que exigem, sim, uma carga refocilante.
Reavivar a chama, dar à vida um tempo
de recreio, de recreação ("recreare",
criar de novo), dando a esse recrear a perspectiva de diversão e júbilo. Não é
à toa que as nossas memórias se fartam vez ou outra na recordação de grandes
recreios vividos com transbordante alegria na aparentemente longínqua infância.
Falamos muito -e isso é importante
para afastar a síndrome do ocupacionismo desenfreado- em valorizar o "ócio
criativo", porém é preciso ter cautela nessa empreitada, pois corre-se o
risco de querer tornar continuamente produtivo (na acepção utilitarista do
termo) aquele tempo livre que tanto reivindicamos. O refocilar deve somar-se ao
"morgar" e isso tudo tem de trazer à tona a possibilidade de viver um
fundamental "ócio recreativo".
Mario Sergio Cortella