“Lutar com palavras é a luta mais vã. No entanto lutamos mal rompe a
manhã.” (Drummond)
Não se trata de
poesia. Mas de política. A edição da “Folha” desta sexta-feira é mais uma
demonstração de que a batalha nas ruas de Kiev ou Caracas não é feita só de
coquetéis molotov, bombas e fuzis. A batalha se dá na mídia, na TV, na
internet, nas páginas envelhecidas dos jornais. São Paulo, Caracas, Kiev,
Moscou e Washington. A batalha é uma só.
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Fonte: Escrevinhador |
Reparemos bem. Ao
lado, temos a primeira página do jornal conservador paulistano – o mesmo que
apoiou o golpe de 64 e emprestou seus carros para transporte de presos durante
a ditadura militar. Na capa da “Folha”, ucranianos escalam uma montanha de
entulho no centro de Kiev, e a legenda avisa: “Manifestantes antigoverno usam
pneus e entulho para montar barricadas…” Logo abaixo, uma chamada sobre
reintegração de posse em São Paulo: “Em SP, invasores destroem imóveis do Minha
Casa”. Numa página interna, o jornal informa que esse “invasores resistiram e,
até a noite, praticavam atos de vandalismo”. (página C-1)
Ucranianos não
praticam “vandalismo”. São tratados de forma heróica. Ainda que se saiba que
parte dos manifestantes em Kiev tem um discurso racista, próximo do nazismo.
Brasileiros são “vândalos”. Ucranianos são “manifestantes”.
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Fonte: Escrevinhador |
Mas sigamos
adiante. Nas páginas internas, a “Folha” traz vários textos do enviado especial
a Kiev. Num deles, o repórter mostra uma pequena fábrica para produção de
coquetéis Molotov, dentro do Metrô de Kiev. O cidadão que produz as bombas é
descrito assim: “Sem afiliação a partidos ou uma proposta ideológica clara, o
cidadão diz ter sido atraído pela praça e pelas manifestações a partir da ideia
de que é necessário mudar o sistema político na Ucrânia.”
Mudar o sistema
político. Hum. Não fica claro se o cidadão quer uma ditadura. A Ucrânia não é
uma democracia? O governo não foi eleito pela maioria? Hum… “Sem afiliação a
partidos” – essa parece ser a chave para legitimar tudo nos dias que correm. A
CIA, os EUA, a CNN, a Folha não tem filiação a partidos. Não. Nem o nobre
manifestante de Kiev.
Ao lado da
reportagem sobre os molotov, um texto opinativo assinado por Igor Gielow
(sobrenome “eslavo”, muito bom! Isso dá credibilidade ao comentário).
Basicamente, Gielow diz que a crise na Ucrânia é “reflexo da estratégia de
Putin para a região”. Ele não está errado. Pena que esqueça de contar uma parte
da história. “O importante não é o que eu publico, mas o que deixo de
publicar”, dizia Roberto Marinho.
Gielow e a “Folha” ensinam: Putin é um líder malvado,
que pretende manter na Ucrânia “a esfera de poder dos tempos imperiais e
soviéticos”. Aprendam: só a Rússia tem interesses imperiais na Ucrânia. Do
outro lado, há cidadãos sem afiliação partidária, lutando contra um insano
governo pró-Moscou. Os EUA e a Europa
não têm interesses na Ucrânia. Só Putin. A culpa é dos russos.
Na “Folha” luta-se
com as palavras muito antes da manhã começar. Luta-se com as palavras em Kiev,
em São Paulo, Moscou. Washington fica invisível. E toda a estratégia passa por
aí. O poder imperial só existe por parte da Rússia. Washington não tem qualquer
projeto imperial: nem na Ucrânia, nem na Síria, nem tampouco na América Latina…
Falando nisso, a
cobertura sobre a Venezuela é também grandiosa no diário da família Frias.
Declarações de Maduro aparecem entre aspas. Velho truque jornalistico para
desqualificar, colocar no gueto da suspeição, qualquer fala dos chavistas.
Segundo a Folha, o governo de Maduro afirma que o movimento (golpista? Isso a
Folha não diz) é uma armação de “forças de ultradireita da Venezuela e de
Miami”. No texto original a expressão está assim, entre aspas. Por quê? Para
dar a impressão de que Maduro é um lunático, e que não há forças de
ultradireita lutando nas ruas. Não. Há só “estudantes” e “manifestantes” (e
agora sou eu que coloco entre aspas).
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Fonte: Escrevinhador |
A legenda da foto
ao lado (também publicada pelo jornal conservador paulistano) diz: “Estudantes
queimam lixo em atos contra Nicolás Maduro”. Primeiro, como se sabe que o
sujeito é um “estudante”? Depois, reparem que queimar lixo na Venezuela é “ato
contra Maduro”. Queimar prédios em desapropriação, em São Paulo, vira
“vandalismo”.
Em Caracas não há “vândalos”.
Ao lado da foto,
um texto assinado por repórter (que está em São Paulo!!!!!) narra roubo de equipamento da CNN em Caracas: “o
ataque à CNN se assemelha a inúmeros relatos de motociclistas intimidando
manifestantes, com tolerância e até respaldo das forças de segurança do
governo”. O roubo ocorreu em manifestação da oposição. Mas o roubo certamente é
coisa dos chavistas. Claro. Nem é preciso ir até Caracas pra saber (registro a
bem da verdade factual que o repórter - a quem conheço, ótima pessoa – foi
correspondente em Caracas).
No mesmo texto
(assinado, de São Paulo) os grupos que defendem o governo são chamados de
“milícias”. Ok. Já estive em Caracas cinco ou seis vezes. E há grupos chavistas
que se assemelham mesmo a milícias. Mas do lado da oposição há o que? Não há
milícias? A turma de Leopoldo, que deu golpe em 2002, é formada por cidadãos
inocentes. E só.
Quem lê a “Folha”
aprende que, em Caracas, há de um lado “milícias chavistas”. De outro, só “estudantes”
e “manifestantes”.
Não há
neutralidade no uso das palavras. Nunca houve. Nunca haverá. E quanto mais
agudas as crises, mais isso fica claro. Há escolhas. A “Folha” faz as suas. A
CNN, a Telesur, a VTV – ou esse blogueiro. A diferença é que uns assumem que
têm lado. Outros fingem que estão “a serviço do Brasil”.
Lutemos, com as
palavras. Não há saída. O outro lado luta todos os dias, todas horas.
“Palavra, palavra
(digo exasperado),
se me desafias,
aceito o combate” (Drummond).