domingo, 23 de março de 2014

Olhando pela janela

                Em alguns bairros o caminhão que recolhe o lixo só passa na madrugada, então os moradores colocam os sacos com lixo em frente da casa e vão dormir. Tranquilos em suas casas, no conforto de uma cama ou de uma rede, com a fome saciada e sem sede depois de tomar um copo gelado de água. A cidade começa a adormecer.
                Às vezes o caminhão demora um pouco mais para passar e animais começam a surgir e a mexer no lixo. Alguns até acordam com o barulho e começam a se irritar, porque o animal (alguns vão falar que é cachorro, outros vão falar que é um gato, poucos dirão que é rato) vai rasgar toda a sacola do lixo e os funcionários que conduzem o caminhão não levarão todo o lixo deixando alguns restos em frente à casa da pessoa.
                E isso acontece. No outro dia o morador ver os restos que ficaram, principalmente da sacola que veio da cozinha. Alguns desses moradores vão até jogar praga no animal que fez aquilo e culpar o governo por não retirar esses animais imundos da rua que rasgam o lixo. Parece um clico constante que se repete todos os dias.

                Porém, em outra noite, alguém não dormiu. Não estava com sono, então ficou criando um texto para um pequeno blog. Era noite do caminhão do lixo, mas como sempre ele atrasou e um animal apareceu para remexer no lixo. Curioso, ele se perguntou se seria um gato ou um cachorro, então foi até a janela para sanar sua dúvida. Apostou mentalmente qual seria o animal e perdeu a aposta para si mesmo, o animal que estava lá é conhecido pelos cientistas como Homo Sapiens Sapiens, pelos políticos como eleitor e pelo resto da sociedade... não, o resto da sociedade talvez nem o verá, porque era apenas um ser humano catando lixo.
Fonte: http://bit.ly/1do0tGs
                Ele era exatamente igual ao seu observador e exatamente igual a aquele que pela manhã irá praguejar de raiva, talvez a única diferença seja que aquele que estava mexendo no lixo não voltará para casa tão cedo, se é que tem casa, e não terá sua fome e nem sede saciada.
                Ele não foi o único naquela noite. Homens, mulheres, crianças passaram primeiro que o caminhão do lixo e tentaram recolher tudo que desse para ser reaproveitado. Não só comida, mas garrafas que poderiam usar para armazenar água também eram recolhidas.
                Aquela não foi a única noite. Em todas as noites que o observador teve que ficar acordado animais mexeram no lixo... animais iguais a ele. Alguns até tinham receio de mexer no lixo, ficavam olhando para o saco preto, olhavam para um lado e para outro e depois de alguns minutos abriam o saco. Os últimos a passar eram os que menos levavam alguma coisa, porque os outros já tinham passado. E na manhã seguinte o dono da casa irá jogar praga no animal que fez aquilo e culpar o governo por não retirar esses animais imundos da rua que rasgam o lixo.
                Aquela cena repetida diversas vezes durante a noite era quase perturbadora. Como nós mesmos podemos deixar que algo do tipo aconteça? O mais perturbador é que nossa constituição no seu art. 5º, inciso III diz que ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante, porém a ineficiência dos órgãos públicos e muitas vezes a nossa própria omissão permite e contribui que seres humanos coloquem suas vidas em risco para tentar matar sua fome, muitas vezes nem sua fome, mas a fome de sua família.
                Um senhor chamado Malthus uma vez disse que a população crescia em progressão geométrica e a produção de alimentos em progressão aritmética e isso iria fazer com que chegasse um ponto onde a população iria morrer de fome. A população morre de fome hoje. Temos mais pessoas do que comida? Não. Temos uma péssima distribuição de alimentos.
                Essa cena que o observador viu é um dos exemplos que mostra que temos muita comida e como não somos capazes de comer tudo ou de vender tudo jogamos fora no lugar de dar para alguém que está morrendo de fome.
                Essa história não saiu toda da “cabeça” do observador, saiu dos seus olhos, porque é uma história real. E essas pessoas que mexeram no lixo não são únicas, se pelo menos uma vez você andar na rua e abrir a janela dos seus olhos poderá ver muita gente. Excluídos, humilhados e esquecidos pela sociedade, estão todos aí... ao seu lado, ao nosso lado.

Foto retirada antes do jogo entre Brasil x México pela Copa das Confederações (Edimar Soares / O Povo)





2 comentários:

  1. Século XXI d.C.

    Estados-nação, civilização, meio técnico-científico-informacional.

    Thomas Robert Malthus errou Marx aceitou. Adam Smith também acertou do seu jeito.

    Madre Tereza, Irmã Dulce, Gandhi, esquecidos.

    Cristo em processo de esquecimento.

    Riquezas do mundo aumentando.
    Segregação aumentando.
    Pessoas invisíveis aumento.

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    1. Será que seremos esquecidos também, grande Henrique?

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