"Fortaleza tem sido o terceiro
destino mais procurado na Copa 2014. Encanta pelo litoral, pela hospitalidade,
mas abriga situações contraditórias. São várias as fortalezas dentro de uma só.
Primeira cidade a entregar um dos estádios da Copa, não conseguiu ainda reduzir
os fortes contrastes sociais. Apontada pelo relatório das Nações Unidas 'State
of the World Cities’ como uma das 20 cidades mais desiguais do mundo, a capital
cearense possui 75,7% dos bairros com Índice de Desenvolvimento Humano por
Bairro (IDH-B) menor que 0,5 — quanto mais próximo de zero, piores as condições
locais de desenvolvimento humano.
Nestes bairros habitam a maior
parte das 134 mil pessoas que vivem em situação de extrema pobreza. Segundo o
Atlas do Desenvolvimento Humano 2013, esta população sobrevive com uma renda
per capita média de R$ 39,42 mensais. Na quarta capital em número de
aglomerados subnormais (ou seja, ocupações irregulares e/ou ilegais vivendo com
serviços públicos precários), ao todo 369.370 habitantes (16% da população
total) vivem em condições mínimas de vida, de acordo com dados do Censo
Demográfico 2010 do IBGE.
Para esta população, a notícia da
vinda da Copa do Mundo e seus investimentos trouxe esperanças de melhoria na
qualidade de vida. Entretanto, não é o que está acontecendo. Segurança,
transporte, saneamento básico e moradia são algumas das lutas daqueles que
moram em regiões cujo o IDH está entre os mais baixos da capital. O Índice de
Gini de Fortaleza, por exemplo, é de 0,61 — o valor varia de zero (perfeita
igualdade) até um (desigualdade máxima), e serve para medir o grau de
desigualdade existente segundo a renda domiciliar per capita.
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Constraste nos arredores do Castelão - IGOR DE MELO |
Em locais como as Grandes Regiões
do Jangurussu, Ancuri e Bom Jardim, que juntas formam uma população de
aproximadamente 300 mil habitantes, esta situação é bem clara. A poucos metros
da Arena Castelão, vivem 63 mil pessoas às margens do antigo aterro sanitário
do Jangurussu. A elas não falta apenas acesso aos jogos. Faltam condições
essenciais para a garantia de direitos humanos.
No Jangurussu (IDH-B 0,1), o
aterro foi desativado há 16 anos, mas até hoje o chorume - líquido escuro que
contém alta carga polidora e é proveniente de matérias orgânicas em putrefação
- ainda brota da terra. A região trava uma luta histórica pelo saneamento
básico, as casas não têm sequer fossa séptica e sofrem em dias de chuva com o
esgoto invadindo as residências.
O Coordenador do Programa de
Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), Jeovah
Meireles, comenta que o chorume, além de atingir a bacia hidrográfica do rio
Cocó, contamina outros sistemas ambientais como o manguezal, as lagoas
associadas e o lençol freático.
— Um conjunto de impactos
ambientais que, analisados, levando em conta as pessoas que moram nas
imediações e que não tem acesso ao saneamento básico, estas são atingidas
diretamente pelo chorume e demais derivados dos efluentes domiciliares.
Evidencia-se aí, danos socioambientais de elevada magnitude, violação dos
direitos humanos e injustiça ambiental — afirma Meireles.
A assessora político pedagógica
da Organização Não Governamental (ONG) Diaconia, Luciana Brilhante, que
trabalha nestas três grandes regiões (Jangurussu, Ancuri e Bom Jardim), atenta
que com os protestos e manifestações que eclodiram desde a Copa das
Confederações, também surgiram vários sentimentos de indignação em relação à
situação vivida nos locais mais pobres, tais como a dificuldade de acesso à
saúde, educação e violência.
— Na vivência dentro destas
comunidades ouvimos muito a revolta aflorada com os gastos e investimentos com
as obras da Copa, quando no dia a dia eles não têm nem os direitos mais básicos
— diz Luciana.
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Conjunto Novo Barroso, que integra o Grande Jangurussu - Igor de Melo |
No conjunto Novo Barroso (que
integra o Grande Jangurussu) mora a dona-de-casa Albaniza da Silva. De sua
residência, com vista para o Castelão, não existe iluminação pública desde o
dia 10 de maio. No dia do jogo do Brasil e México, em Fortaleza, além dos
gritos das torcidas, ela escutou outro mais forte, o de um homem sendo
esfaqueado na esquina da sua casa.
— A gente sabe que todos gostam
de futebol, mas é inadmissível que, por conta de uma Copa, as pessoas que moram
na periferia fiquem abandonadas, sejam esquecidas e completamente
desrespeitadas, como se aqui não morassem pessoas, cidadãos que pagam seus
impostos — desabafa Albaniza.
Fora a deficiência na segurança e
a falta de saneamento, as três linhas de ônibus que servem à comunidade não
conseguem prestar o serviço, pois as ruas que dão acesso ao bairro estão
intransitáveis.
— Enquanto isso a gente tem que
se deslocar para locais distantes, correndo risco de vida. E, logo ali na
Avenida Paulino Rocha tem um monte de ônibus levando os turistas de graça para
o jogo. Dessa forma nós nos sentimos desrespeitados. Enquanto a gestão passa
uma impressão boa da cidade para as pessoas de outros países, nós que moramos
aqui estamos a mercê do que eles nos impõem, o completo abandono.
Os ônibus gratuitos aos quais
Albaniza se refere correspondem a um total de 300 transportes disponibilizados
pela Prefeitura de Fortaleza para quem estiver com ingresso da Copa, e outros
50 para o local da Fan Fest, no aterro da Praia de Iracema. Alguns destes
veículos trafegam, em dias de jogos, na Arena Castelão, pelas Avenidas Paulino
Rocha, Alberto Craveiro e Juscelino Kubitschek levando os torcedores até os
portões do estádio. As duas primeiras vias foram ampliadas e os investimentos
estão em torno de R$ 87,5 milhões, conforme informações da Secretaria de
Infraestrutura de Fortaleza. O recurso foi utilizado para construção de dois
BRTs , rotatória e túnel.
Já no Grande Bom Jardim (IDH-B
0,1), a violência e a droga atinge grande parte dos jovens. Pertencente à Área
Integrada de Segurança II (AIS II), mais violenta da Região Metropolitana de
Fortaleza, onde os dados da Secretaria de Segurança Pública (SSPDS) apontam
que, somente em 2013, foram registrado 506 assassinatos, uma média de 42
registros por mês. Dos 19 bairros que integram a AIS II, cinco são do Grande
Bom Jardim.
A situação não é muito diferente
do Jangurussu. Os bairros que integram a região estão entre os mais pobres e
com a mais baixa renda por pessoa da capital. Bom Jardim, Canindezinho, Granja
Lisboa, Granja Portugal e Siqueira reúnem mais de 204 mil habitantes. O Grande
Bom Jardim possui 20.459 pessoas vivendo com até R$ 70,00 mensais, ou seja, em
situação classificada como de extrema pobreza.
Em carta aberta às autoridades,
assinada por diversas lideranças comunitárias e mais de 30 entidades não
governamentais, a população pede tanto por paz, quanto por melhorias nas
condições de desenvolvimento humano, tais como acesso emprego, renda, esporte,
lazer e saúde.
SEM DINHEIRO PARA IR À PRAIA
Regina Machado, 52 anos, mora no
Bom Jardim e é uma das que assinou a carta. A Fortaleza que ela conhece não
protege e não abriga ninguém. Se a cidade é turística por causa das atrações
litorâneas, a realidade que Regina convive é a de pessoas que não vão à praia
porque é longe, e porque não têm dinheiro para pagar o ônibus.
— Aqui tem menino que nem conhece
a praia, quanto mais entrar no Castelão. Nosso Castelão é a rua aqui da frente,
que os meninos colocam a travinha e vão jogar. Quando muito a gente vai pedindo
de real em real para conseguir alugar o campo vizinho, mas aí é só em datas
comemorativas.
O que ela diz é traduzido na rima
de João Bruno, 23 anos, um dos jovens atendidos pelo Projeto Paz. Quando
indagado sobre a Fortaleza em que vive, de pronto ele responde:
— Vivendo em gueto, sobrevivendo
em favela. Aqui vida real é censurada em novela. A criança passa fome, o cara
atira e some. Feche sua porta cedo, cuidado com o lobisomem.
Sobre o impacto da Copa nas vidas
da população, a advogada e integrante do Comitê Popular da Copa, Magnólia Said,
aponta como resultado uma maior desigualdade.
— A mobilidade se restringiu a
facilitar a locomoção de turistas e do setor do empresariado nacional e
internacional entre o aeroporto, terminal de passageiros no porto e nos hotéis
e destes para a Arena Castelão. Do nosso ponto de vista, o grande legado é a
desestruturação em termos econômicos, sociais e psicológicos de todas essas
famílias que têm sido brutalmente agredidas pela gestão pública.
Ao GLOBO, o secretário de
Desenvolvimento Econômico de Fortaleza, Robinson de Castro, informou que uma
gama de programas atingem as grandes regiões do Jangurussu, Ancuri e Bom
Jardim. Em nota, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico afirmou
que estes serviços, programas e projetos têm a finalidade de desenvolver a
economia da cidade, com foco na geração de emprego e renda. Dessa forma,
políticas de desenvolvimento e atração de empresas vêm sendo elaboradas, para
atender microempresas, empresas de pequeno porte, médio porte ou, ainda,
microempreendedores individuais para a região.
Todas essas ações são norteadas
com base nos indicadores por bairros da cidade, medidos pela Secretaria,
inclusive o Índice de Desenvolvimento Humano - que fornece indicativo de bairros
que necessitam de uma maior atenção."
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