Estava andando por aí, meio
perdido no tempo, quando avistei uma pessoa conhecida que não via há um certo
tempo. Já até tinha esquecido que aquela pessoa tinha sido bem próxima um dia,
então resolvi conversar um pouco para saber como andava a vida, como estavam as
ideias e o que a pessoa tinha a dizer.
Aproximo-me e sou reconhecido de
imediato. Esta pessoa estava um pouco estressada com algo que tinha lido em
algum caderno político, então questionei:
— O que aconteceu?
— Estava lendo aqui uma
declaração que o Renato Roseno fez. — diz a pessoa.
— E o que ele falou de tão grave?
— pergunto novamente.
— Ele é a favor do aborto! Um
absurdo isso. Até admirava o que ele falava, mas falou uma merda agora.
Acabo assustando ao ouvir a
pessoa dizer isso, então questiono:
— Mas onde está o problema?
— Como assim liberar o aborto é a
medida mais correta? — responde-me perguntando.
— É uma situação complicada.
Tente ver o problema por outros lados, ou melhor, de uma perspectiva mais ampla.
— começo minha fala — Note que a questão do aborto está relacionada, também, com
estrutura familiar onde muitas vezes a mulher não tem condições de criar a
criança e diante de todo um conjunto de problemas resolve escolher essa
alternativa.
— Não quer criar a criança,
simples, entregue para a adoção... — fala com certa rispidez.
— Simples? Estamos falando de uma
futura pessoa, de uma vida, nem sempre é tão simples. A adoção nem sempre é tão rápida. Se ela for adotada logo, tudo bem, mas se não for? Se cair em um abrigo
que não têm tantas condições? Isso se for para um abrigo, porque essa criança
pode ficar exposta a um conjunto de fatores que a “empurrem” para um destino
não tão legal. Mas supondo que ela chegue em um abrigo, só que não seja adotada
rapidamente. Você acha que as pessoas querem adotar crianças já crescidas?
Geralmente procuram as mais novas e a coitada da criança, mesmo estando em um
abrigo, crescerá solitária. Isso até poderia melhorar se não houvesse tanto
preconceito com adoção feita por casais homossexuais.
— Então podemos simplesmente
matar uma vida, porque a pessoa não tá mais afim de ter ela?
— Não é a questão de querer ter
ou não. A pessoa só está diante de uma situação onde está sendo pressionada por
todos os lados e não consegue achar outra saída e as vezes, dado o contexto,
não há outra saída. Não é uma decisão fácil e o que você está propondo pode
matar a criança jogando-a a sorte em algum contexto, que pode ser bem cruel.
— Eu ainda acredito que medidas
públicas podem resolver o problema sem ter que liberar o aborto, como dar mais
atenção as gestantes e fazer fiscalizações em lares de adoção...
— Acho que liberar não é a
palavra certa, mas também acredito nas medidas públicas, porém feitas de outra
forma. As pessoas que propõem a legalização do aborto também colocam no projeto
todo um sistema de apoio psicológico a gestante para que ela consiga racionalizar
a situação e ver se aquilo é o que realmente quer.
— Nós precisamos de medidas
públicas voltadas para esse lado e que sejam urgentes, isso é necessário. — começa
falando a pessoa — Agora veja por outro lado, as pessoas vão começar a praticar
sexo sem segurança sabendo que se engravidar vão poder abortar...isso vai
acabar gerando um grande número de pessoas com DSTs, aí teriam que pensar em como solucionar esse problema...nosso
sistema de saúde é precário, teríamos capacidade para resolver esse grande
número de casos de DSTs?
— Você precisa olhar esse assunto
como um todo. Como já disse nos projetos procuram dar assistência psicológica
antes de tomar a decisão, porque ninguém quer transformar o aborto em medida
contraceptiva, até porque a gravidez já teria ocorrido. Também sabemos que em
países que legalizariam o aborto, dando o acompanhamento necessário, a prática
até caiu. Entenda, o aborto já acontece em nossa sociedade. A diferença é que
muitas mulheres fazem isso em clínicas clandestinas colocando suas vidas em
risco sem nenhuma segurança física ou psicológica e as que conseguem sobreviver
são descriminadas quando chegam nos hospitais, pois temos uma cultura que
criminaliza a mulher por quase tudo que ela faz. Sobre a ineficiência do nosso
sistema de saúde: parte dele vem da falta de investimento e a outra parte vem
da forma como as políticas de saúde são abordadas, ou melhor, as políticas
públicas, pois a maioria é vista de forma isolada, porque não me venha dizer
que tratar DST é algo somente de saúde, é educação, é tirar o tabu sobre o
sexo, é conversar e explicar desde cedo como o mundo funciona.
E assim nossa conversa não durou
muito depois da minha última fala. Nos despedimos e seguimos cada um para um
lado. Ele pegou uma rua a esquerda e eu segui em frente. Sei que não o convenci
de nada, mas que fui capaz de cutucar sua mente para pensar diferente sobre o
assunto e daí construir um novo raciocínio.
E como tenho tanta certeza disso?
Simples (agora sim o simples)... a pessoa em questão sou eu de três anos atrás
que um dia falou tudo aquilo, mas um amigo cutucou-me em uma conversa e daí
consegui começar a olhar a situação como um todo. Aqui só me dei a oportunidade
de conversar comigo mesmo e mostrar para meu passado que tudo faz parte de um
processo de constante mudança.
Não existe assunto que não se deva
conversar, o problema mora em não debatermos os assuntos considerados
polêmicos. Fazer isso, nesse caso, é aceitar que mulheres sejam consideradas
pecadoras (seguindo uma vertente religiosa) ou criminosas por escolherem o
aborto e, pior ainda, aceitar que muitas procurem clinicas clandestinas e
coloquem sua saúde física e psicológica em risco. Em resumo, é aceitar um
sistema que tenta esmagar a mulher.
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