quinta-feira, 22 de maio de 2014

O Regulamento da Felicidade - Nathan Carneiro Parente

Regulamento: s.m. Ato ou efeito de regular.
Estatuto, instrução que prescreve o que se deve fazer: regulamento de polícia.
Conjunto de prescrições que determinam a conduta de militares em qualquer circunstância.
Conjunto de regras para qualquer instituição ou corpo coletivo.
Conjunto de disposições governamentais que contém normas para execução de uma lei, decreto etc.: regulamento do consumo de água.
Ato de determinar, de regular em geral: regulamento de um negócio.”


                 Fim de 2012, ano conturbado levado à frente por solavancos violentos. Eu tinha sido acertado por um raio num céu aberto. Uma mescla de fenômenos naturais, sociais e probabilísticos aconteceram de uma vez só e me vi imerso em uma miscelânea de ideias que se encerrava semanticamente em uma palavra que os antigos gregos conheciam muito bem: caos. Aliás, primeiro deus concebido pela mitologia grega no dizer clássico de Hesíodo.
                Ingênuo que estava e brutalmente atordoado pelas marretadas que me davam a vida, não presumia que ali, no caos, estava concentrada toda uma matéria em transformação e que ao longo do ano aquilo deveria me servir para que algo novo nascesse entre observações, reflexões e experimentações.
                As variáveis eram boas. Vestibular feito. Pontuação suficiente. Comecei a pensar já cedo em me dedicar àquilo que sempre me foi de interesse incessante, ao estudo dessa mãe louca chamada Filosofia. Mal comecei a falar das possibilidades e as vozes que oscilavam entre medo e norma falaram austeras acerca dos “bons modelos de vida”. Todos engajados e bem vestidos com as opiniões religiosas, mas o deus citado tinha outro nome: dinheiro. Dessa forma, quando o dedo foi clicando na opção de curso pretendido, fui um herege frente às normas dessa religião comportamental que encoraja aqueles que nunca tiveram coragem de fazer o que realmente quiseram a passar sua tradição para frente. Sem muita opção, dado o caos estabelecido, fui vencido pela tradição do “medo das possibilidades”, mas segui caminho adentro naquilo que me era possível, afinal tudo é conhecimento.
                O curso foi Matemática Industrial. Proposta excelente, excelentes professores, excelentes aulas. Fui presenteado não só com a possibilidade de estar numa universidade que esta entre as melhores do Brasil, mas com um departamento especialmente fantástico, diria ser um departamento “sui generis”. Secretárias, coordenadores, professores e trabalhadores dos mais diversos serviços com atuação impecável de suas funções. Tinha encontrado naquele local não só uma ideia fantástica, mas uma experiência sensível com pessoas realmente singulares. O que faltava então? A opção, eu diria.
                O ano de 2013 foi se revelando uma cossenóide e os pensamentos buscando a razão de estar ali. Afinal, é o mínimo para alguém que gosta de Filosofia, estar incomodado. Dediquei-me então a passar o ano todo pensando, refletindo, me questionando e analisando todas as variáveis que me prendiam àquela condição. Sem querer já estava pondo-me a exame, logo no primeiro semestre do curso. Terminei o semestre imensamente incomodado com as perguntas que pareciam gerar cada vez mais perguntas e não respostas. Ao consultar outro, ninguém questionava a tal “noção primitiva” que era objeto de fé deles. Era para estar ali porque precisava viver bem, porque necessitava de dinheiro para ter um futuro brilhante. Enfim, segundo os outros, estar ali era quase disciplinar: lugar certo, ação certa e tempo certo.
                Resolvi então começar o 2º semestre de forma provocadora e apertando a ferida do social até ver o pus, enfiei no meio das disciplinas do curso algo de sombrio, algo de macabro para esse tipo de gente: Introdução à Filosofia. Precisava por a exame tudo aquilo que me angustiava e me causava incomodo além do comum. Ali sim respirei ar puro e senti realmente estar no meu lugar certo, fazendo a minha ação certa e no meu tempo certo. Estudamos de Hesíodo a Foucault sob a orientação do grande professor Emanuel Germano, e a fornalha dos questionamentos foi aquecida outra vez. O fogo da forja que surgia foi vista pelos adeptos do normativo como inferno, mas foi para mim a centelha que deu vida ao tal martelo dos ídolos. Com ele em mãos, fui esmagando aquelas certezas que haviam me imposto como o modelo ideal de felicidade.
                Meu objetivo em escrever essa história é alertar não só a leitor, mas quem ainda está confuso acerca de que carreira escolher na vida, sobre o maquinário brutal que se constitui de uma composição harmônica entre mídia, status e preço – não falei de valor aqui, falei de preço – que sempre sussurra aos ouvidos das massas sobre qual é a vida que você deve viver para ser bem sucedido. É aquilo que se chama de ditadura da felicidade, ou melhor, normatização da felicidade. Aliás, o conceito de modelo de vida ideal é antigo e remonta os conceitos propostos pelo filósofo grego Platão. Dizia ele que nossa função aqui é determinada pelo cosmo e que a liberdade é algum tipo de defeito que permite muitas vezes com que nos afastemos daquilo que estamos predestinados, segundo os dizeres do professor Júlio Pompeu, coautor de “A Filosofia Explica as Grandes Questões da Humanidade”, ao lado de Clóvis de Barros Filho, professor de Ética da ECA na USP.
                Para famílias que vão de ricas a pobres – afinal falta de compreensão e incentivo não tem necessariamente classe social – parecem existir apenas três cursos: Direito, Medicina ou Engenharia, os outros sempre são motivos de decepção, porque parecem ser sempre aspirantes a uma área de destaque no mercado. O estado ainda ajuda a mídia a preservar a sua parcela de “idiótes”. Daqueles que aceitam as condições que não participam.
                Surge então a segunda fase dos incompreensíveis (ou deveria dizer incompreendidos?), àqueles que sucumbem as tais “segundas opções”. “É, não deu para medicina, então faz enfermagem, é muito parecido e vai ter elementos do que você gosta!”, “Não deu Engenharia? Tenta então para Arquitetura, quase a mesa coisa!”. Apesar desse tipo de incentivo ter levado muitos alunos que não tinham a menor noção do que queriam a se encontrar, são eles os responsáveis também pelo reconhecimento de outras áreas do conhecimento como ascendentes a outras, por exemplo, a frase imbecil: “Arquitetura é o curso do cara que não é macho suficiente para fazer Engenharia e nem viado de mais para fazer Design de Interiores”. Esse tipo de argumento não valoriza o curso e nunca reconhece o real sentido, a real proposta da área, criando redes de ignorância que tratam sem cuidado a concepção de futuro profissional de um cidadão.
                Você que é pai ou mãe, saiba reconhecer as aptidões dos seus filhos e incentivem isso ao invés de destruírem um futuro brilhante com promessas de um futuro que deveria ser o seu, mas você nunca teve coragem de encarar. O futuro do seu filho, principalmente no que concerne a negação de suas aptidões naturais, dão fundamento exato ao famoso jargão: “O seu filho como Engenheiro é um ótimo poeta”. Duro de escutar? Talvez. Mas o ato é bem pior. Garanto que viver a degradação de um país pelo incentivo ao normativo é muito pior e você está contribuindo também para péssimos profissionais no mercado.
                A sociedade disciplinar está aí estabelecida para garantir que modelo de vida você deve ter para agradá-la e está incluso no pacote algo que te afaste bem do pensar. Dizem por aí que o Brasil precisa de mais profissionais da tecnologia, especialmente àquelas voltadas para a construção do celular da moda que te faz gastar tubos de dinheiro para ficar com a cara enfiada em uma tela enquanto não aproveita a vida real. Troca à vida real pela virtual. Alegoria da Caverna para quem é desse partido.
                Como diria Darcy Ribeiro, a crise na educação não é uma crise e sim um projeto.
                A crise na educação começa dentro de casa, no incentivo que você da ao seu filho, ao seu neto, quando mostra para ele que a profissão mais importante é aquela de maior preço e não de maior valor. É por esse tipo de coisa que o professor, profissional mais importante para o desenvolvimento social, se torna o profissional menos valorizado e continua sendo. As mentes dominantes exigem que você pense menos nisso e estão enganados aqueles que acham que dominação só se exerce por violência, pois a mídia ta aí para provar o contrário.

                Muitos podem pensar que o que falo aqui é para desencorajar as pessoas a buscarem áreas como Medicina, Engenharia ou Direito. Se pensou assim, não entendeu nada do que disse. No fim é claro, se é o que você gosta, faz com prazer e sente que tem aptidão para isso, FAÇA! Medicina, Engenharia e Direito são áreas promissoras e riquíssimas de conhecimento, mas não denigra as outras áreas pela valorização que o governo da a elas, há pessoas comprometidas lá dentro e todo curso tem uma proposta, um motivo e uma razão de existir. Pessoas extraordinárias e mentes brilhantes são capazes de tornar esse local em que vivemos, chamado mundo, algo mais vivível, mais interessante, mais plausível e elas não estão concentradas apenas nessas três áreas. Valorize isso e repense esse tal Regulamento da Felicidade.

Nathan Carneiro Parente


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