quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Um passeio pelo obsceno - Mario Sergio Cortella

Vivemos, todo ano, a ressaca pós-carnavalesca. Para muitos, chega ao fim o império da luxúria e da devassidão; para outros tantos, é o momento do reino da nostalgia e da sauda­de do futuro.

Alguns, já um pouco enfastiados com as li­bações etílicas, procuram recompor-se da sen­sualidade transbordada. Outros, avessos talvez à explosão das genitálias desnudas — ofertadas por milhares de ladies Godivas pós-modernas — regozijam-se com o término daquilo que en­tendem como o preâmbulo do apocalipse.

Carnaval, tempo de escândalos e prazeres? Entre seus despojos, ficam, ainda, as imagens do despudor público (o privado não) exibidas pelos jornais e pelas revistas e televisões. 

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

No carnaval é normal

                Carnaval... talvez a única época do ano que nunca vou conseguir entender por completo. Não sei se máscaras são colocadas no rosto ou se máscaras são retiradas, talvez os dois ao mesmo tempo e no mesmo espaço. Deixem-me explicar melhor: olhe para aquele grupo de pessoas em um mela-mela no carnaval, alguns fantasiados e outros não, alguns bêbados e outros não, aí eu lhe pergunto quem ali está sendo quem realmente é?
                As pessoas se soltam e fazem de tudo para se divertir, mas algumas fingem ser o que não são, enquanto outros mostram o seu lado mais verdadeiro e nesse espaço de múltiplos rostos notamos algumas coisas.
                De tudo tem um pouco e se pararmos para olhar direito veremos muito mais do que a goma que poderia ser utilizada para fazer tapioca por dois dias. Vemos o lado humano do político que existe por trás de tantas formalidades; o patamar de igualdade entre o aluno e o professor no meio da folia; o rockeiro sambando e o católico fazendo ritos originários da África que se parasse para pensar iria chamar de “macumba”; o evangélico tradicional está fantasiado de diabo, enquanto a pessoa que tem preconceito com o Nordeste desfila na ala das baianas; note que bem ali no canto temos o defensor da família bêbado tentando assediar uma moça  e logo em seguida vemos o homofóbico travestido.
                Tudo isso fica “normal” no carnaval, tudo isso é “permitido”. Uma festa “pagã” que foi aderida pela Igreja Católica e que significa, segundo a Wikipédia, o “adeus a carne” para logo em seguida cada um começar um momento de reflexão, só que parece que as pessoas se esquecem de refletir sobre o próprio carnaval e, por que não, refletir durante o próprio carnaval?

                Não é que eu odeio o carnaval, até gosto, mas ver tantas máscaras sendo colocadas e outras caindo, e olha que não estou falando da fantasia, me obriga a pensar um pouco sobre isso. E a conclusão que chego é que continua sendo a época do ano que menos vou conseguir compreender.


Foto: Cid Barbosa/Agência Diário (G1.com)


domingo, 15 de fevereiro de 2015

Refocilar é preciso - Mario Sergio Cortella

Fica malicioso perguntar a alguém se já está preparado para refocilar tranqüilamente nos feriados ou, melhor ainda, indagar a priori "refocilaste bem?"


Fevereiro é sempre um mês que carrega em si a agradável idéia de menos trabalho (para quem já o tem), seja por ser um mês mais curto (mesmo nos anos bissextos), seja pela constância com a qual o Carnaval nele desponta. É mês também um pouco indefinido, inclusive quanto à origem do nome "februarius" -talvez vindo do latim "februare" (purificar)- e acabou se tornando para nós uma época raramente recomendável para iniciar projetos e atividades, exceto no insistente e fragmentado calendário escolar.
Fevereiro parece um intervalo temporal menos sério e austero, quase deixando levemente suspensa a gravidade de nós requerida para o restante dos meses. Nele, o nosso desvelo dá-se o direito de relaxar um pouco e dissolve em parte o apego aos cronogramas implacáveis ("Depois de fevereiro, a gente vê como faz").

No entanto, apesar da fingida vacuidade, fevereiro lembra para muitos um período de agradável refocilamento. Refocilamento? Será que Assis Valente sabia disso ao escrever "Brasil, esquentai vossos pandeiros, iluminai os terreiros, que nós queremos sambar?". Nosso idioma guarda delícias surpreendentes e uma delas é que essa estranha palavra, "refocilamento", significa recuperação das energias perdidas. De onde vem tal entendimento? Em latim, o vocábulo "focus" (fogo) ganhou o diminutivo "focilus" (foguinho), não na acepção ébria, tão inconveniente durante esses festejos, mas indicando o esquentar, aquecer e, por extensão, reanimar.

Refocilar é, portanto, reaquecer e revigorar! Uma pitada de erudição? É só lembrar que Camões usa o verbo no Canto 9º de "Os Lusíadas", dizendo "Algum repouso, enfim, com que pudesse / refocilar a lassa humanidade". Fica malicioso perguntar a alguém se já está preparado para refocilar tranqüilamente nos feriados ou, melhor ainda, indagar a posteriori, na volta ao trabalho: "Refocilaste bem?".

Para muita gente, refocilar implica antes de tudo ser capaz de passar os dias de folga "morgando". "Morgar", essa gíria brasileira que quer dizer, entre outras coisas, dormir, nada fazer, deve ter a sua fonte indireta em "morgue" (necrotério, como descanso) ou até em morgado (bens e privilégios herdados que permitiam não trabalhar mais). De qualquer forma, "morgar" sugere o remanso, o sossego, a habilidade lentamente desejada e desenvolvida para imobilizar as atribulações do cotidiano e evitar perturbações momentâneas.

Refocilar é restaurar e reforçar. É recompor potências, recuperar forças, retomar a animação, isto é, a vitalidade. Note-se que, em todos os desdobramentos e identidades desse verbo, aparece o prefixo "re", que indica repetição ou reforço de sentido, de forma a trazer de volta aquilo que talvez tenha se ausentado. Mas logo agora, que o ano apenas começou? Não parece prematuro? Refocilar, todavia, é também desenfadar e desenfastiar, e aí o prefixo "des" é negativo, de modo a tornar nulo o enfado e o fastio. Qual enfado ou fastio? Aquele que os aborrecimentos, as importunações e os desprazeres miúdos provocam sorrateiros no nosso viver e que exigem, sim, uma carga refocilante.
Reavivar a chama, dar à vida um tempo de recreio, de recreação ("recreare", criar de novo), dando a esse recrear a perspectiva de diversão e júbilo. Não é à toa que as nossas memórias se fartam vez ou outra na recordação de grandes recreios vividos com transbordante alegria na aparentemente longínqua infância.


Falamos muito -e isso é importante para afastar a síndrome do ocupacionismo desenfreado- em valorizar o "ócio criativo", porém é preciso ter cautela nessa empreitada, pois corre-se o risco de querer tornar continuamente produtivo (na acepção utilitarista do termo) aquele tempo livre que tanto reivindicamos. O refocilar deve somar-se ao "morgar" e isso tudo tem de trazer à tona a possibilidade de viver um fundamental "ócio recreativo".

Mario Sergio Cortella